partículas de pequeno peso a ondular até que a imagem se faça dança, neste pingo ou sopro de areia que estão no livro do contágio
segunda-feira, outubro 3
(achado nas bordas de um livro) (de poemas)
mesmo haverá pouco o que fazer
esfregar com o vidro
d'água o ressecamento do sono
o vício da meia-luz
alastro água pelos pulmões
eu e você nos adiantamos a dizer a lua que ninguém
vê, aquela pedra de prata
urgente a rasgar o cansaço sob a cidade
desperta
a fome o apagamento
as falas entrecortadas
(um momento cristão)
você parte numa caravana voadora
eu estou na hora do fígado
enrodilhada como hera
este desígnio a borrão
deixar resmas, não seguir
desígnio em que horas, anteriores
se transviassem
em calidez intóxica
e não mais sozinha
a madrugada
e seus arrependimentos
sexta-feira, junho 17
depois do deus selvagem
acudiu que todo gesto, as superfícies emancipatórias eram senões de uma obra transfigurada, menor, trágica
o carro pararia de funcionar tanto quanto uma criança seria acolhida por uma desafortunada
os motores enfim cessam todos
a bruta espera de um conceito e o desespero de olhos alucinados, os vizinhos canibais: os apartamentos cobertos de culpas, quebrou, eu me desapontava, era a quarta ou sexta vez que acusava problemas o carro? largou a bolsa ao chão:
em um minuto derrisório, derrapante
em vão, era a sexta vez
contos de fada, sabe? reaparece de um ângulo absurdo, surge um homenzinho nu, aguarda-me do outro lado da rua
rápido está colado ao vidro, foi a bateria, está me oferecendo ajuda?
o resplendor de estar sempre munida de óculos escuros
encaro minhas pernas e julgo que não, a padaria logo ali ao lado
ele me pergunta o que quero dizer, o que fazer: de onde venho
perco-me, saio do automóvel, respondo, ele oferece telefones, dissuadir os maus costumes
perto da guarita, acrescento
sem dúvidas, dissuadir
o terror dos mascadores de chicletes, escuto um apartamento
britadeiras não querem copos d’água
uma enorme quantidade de lenços de papel
um prato típico, quente, um minuto ou menos
sairia, atropelada, atrofiada, do espaço, agradeci
com distâncias, o que poderia pensar enquanto tomava assustada
um café? pequeninos suicídios, que se desenrolassem tão ternos como aquele acidente
já cometidos, aguardasse outro homem, outro nu, um técnico, treinaríamos
o mesmo problema
acomode-se nesta minúscula pedra, eu sei, é um excesso de dimensão do pequeno
eu não me sento no chão, o trânsito enjoava
havia um sacerdócio implícito nas pernas
turvas desgraças imensas, placidamente de ódio
adoraria o reencontro com alguma espécie de plasma e valsa
não, valsa não, disse da imaterialidade delas, são tão volúveis, tão impossíveis
um homem que recordasse
largou a bolsa ao chão, largou inclusive os sapatos, de que seriam
férteis os sapatos agora? repetidamente comeu todos os bombons
descongestionava uma passagem, desfazia peripécias, ah chocolates
acidentes sanguessugas, chocolares
a seguir, a atmosfera de um poço
o horário da tarde, requinte impaciente de quem não é
futuro, aturdido, as bebedeiras depois
inexplicável quando passa, você não imagina, as absorções
suavemente uma mulher se roça em um cão
é a súplica da tarde, súplica de que haverá invasão no país
para abrir avenidas a soldados e cacetetes inclusive adagas
lucro dos sintomas
a prenha da degola, a casta
escuridão
quinta-feira, junho 2
al berto, roubado para o contágio
Diante de si mesmo, imobilizado, os animais da noite aproximam-se e falam-lhe baixinho. a terra abre-se à subtilidade dos fogos, gera-se um novo corpo no princípio imemorial do ouro e das geadas.
os animais são formas etéreas coladas à pele. da humilde casa que habitamos pouco resta. as urzes irrompem, recortam-se no escuro, e as sombras dos frutos em contraluz formam geometrias e constelações. um peixe brilha sobre as pedras, morto.
enumero por fim os alimentos, o olho, o círculo das chamas, a luz dos dias sem ninguém.
ele fala com os animais da noite, segreda o que em voz alta não é possível dizer. prepara o lume, solta as aves, adormece em cima do mar.
silhuetas sentadas à fogueira da noite escutam o silêncio sibilante dos astros. crepitam insectos, vozes mágicas.
vamos pelas dunas da manhã, nómadas onde um rosto nos recorda o inaudível canto da noite que fomos: a fresca Alba das galáxias.
Al Berto, de “Meditação em S. Torpes”, 1979
sexta-feira, maio 27
segunda-feira, maio 23
sábado, maio 14
livro do contágio, página 46, para ler com espumas
(mordo o lábio de baixo,
aprendi a fazer isso com o cinema americano as sibilas sonsas do cinema americano e salubre cintura bem ajustada no cilindro das esperas, janelas altas impossíveis de escalar, mordo o lábio e repenso o reparo de estar dia-a-dia defronte à janela e querendo que na laje adiante alguma calça azul se dispa e que alguma mão contorne algum desejo em rumo ascensional, reparo que a cortina mourisca que me cobre abre furos octogonais por onde o olho cabe em perfeição por onde o olho esbarra nos andares dos outros edifícios na espera abrupta de alguém que tire as calças e depois jogando os braços para os céus faça das nuvens da cidade um desenho erótico – como uma caravana de ciganos velhos – e depois rodopiando o corcel de suas patas veja meu olho, octogonal tímido, dentro da casa avarandada e dentro do manjericão farejante, que me buscassem numa partida circense
eu já nua com as meninas ciganas
as crianças dançarinas
com sapatos cheios de pregos e gargalhadas
batendo na terra arando a paisagem
eu e as meninas
luas-cheias de sexo
sábado, abril 9
defronte a ode, marítima
Estou sentada defronte. E ele frente ao cais. Uma luz fria aqui. Lá, onde?, talvez também um qualquer frio. Lembro-me dele dizer haver brisa. Fecho o livro. Não cheguei a abri-lo. Fico com o que pode ter restado, ao longo do caminho, daqueles minutos possuídos, minutos atrás. Esforcei-me apenas em não deixar que tudo se esvaísse, como tudo se esvai. Nestes trinta minutos de um fôlego compresso entre faróis e uma temporalidade presumível que me desconheça, agora, chego aqui. Demoro-me pouco e volto a ver o homem parado no cais, com a fivela em meia lua sobre si, este pêndulo comercial que faz desenhos geométricos de sombra ao redor de seu corpo. Lembro-me da inutilidade de tudo isto, desta movência, este guindaste talvez amarelo sob um sol talvez de gesso, tudo sobre um caminho que apenas acidentalmente o levou ao cais. Mas no cais tudo começa a desabar. E ele mal sabe, ou sabe-o bem demais. É para nós que esta cena é montada. Por mais que nos esqueçamos.
Vejo-o e coloco nele um chapéu de mágico. Não há chapéu nenhum, o sol é ainda fresco matutino, mas visto-o com luvas também, sem deixar que tudo isso crie sobre seu porte um humilhação maior, não penso mesmo em palhaços, penso no prestigitador, e é exatamente isto: a palavra que vem junto com o mar semântico que ele convoca.
Pois, um mago. Um mago com espécimes de palavras mágicas. E assim ele começa a sua ode marítima, brincando perversamente de evocar fantasmas, como aquela criança que fizera o teste da vela e topou de cara com um morto não amigável. Este sujeito está ali tão apático e descrente que imagina mesmo que, ao evocar as palavras corretas, imagina que este exercício não pudesse ter conseqüências tão drásticas como aquele levantar do espelho da infância. Começa, aos poucos, lento, até ir se possuindo por aquilo que ele mesmo canta, até se embruxar de sua própria técnica. Em segredo é que eu choro. Este homem parece não me enganar. Nesta hora, deixo de lado as suspeições todas com que chego perto dele. Desisto de ser lúcida. Guardo o meu estatuto para o final. Fico comovida. Vejo que o feitiço virou contra o feiticeiro. Ele evocava tudo, todos, tudo, num desespero absurdo por sentir. Parece que ele sente isso tudo? Não. O desespero é exatamente ele saber que não pode mais sentir. Sentir ficou macerado em algum cargueiro de papel com o qual se brincou na infância, mas que amoleceu e rasgou. Não há mais como acreditar em sentir. E essa é a tragédia do marinheiro que o homem não é, mas mago que se fez mago negro. Convoca e convida, num réquiem às avessas, satânico, a trupe mais violenta que o penetrasse de algum laivo de sentir. Mesmo que seja a terrível das dores. Que seja a terrível das dores! É de uma tristeza tamanha a apatia que o leva a este ato derradeiro de invocar a morte como uma maneira de reanimar o corpo perdido. Mas a magia ocorre. E aquele momento êxtase em que ele silencia o poema com um ehhhhhhh ehhhhhhhh ehhhhhhhhhh ehhhhhhhhh ehhhhhhhh imenso, ali nesta hora surgiu-lhe a máscara perversa: o bebê, a criança em seu pranto. Não é um clímax, mas um anticlímax, ou ainda é clímax pelo estertor, é gozo de pranto. Nesta hora o mago tira as luvas (veste outras?), a carapuça dionisíaca ansiada de tudo poder voltar a sentir veio, pelo revés, agora não vais sentir mais nada, e essa lâmina rota tem o talhe daquele dia de infância em que tudo era possível. Ele é lúcido demais de sua impotência. E lúcido demais da potência disso. Um mago. Cai no pranto, mas o pranto, até o pranto cansa. Ou expõe demais. Ludibria ou sai do controle. Organicamente, como um bêbe que chora a esmo, chora pela própria existência palpável e material de haver o choro, e gastá-lo, como esse bebê ele estanca, e pára, e se depois do temporal vem a calmaria, depois do choro berrante, para a criança, saciada de chorar, saciada a esmo de sentir, vem o sono. É quando ele abre os olhos abertos. Percebe que sua evocação mágica, seu domínio cênico da partitura do assombro, não trouxe de volta a aventura mítica dos mares, não resgatou o corpo as intempéries da viagem. Não: afundou-o mais, é pela queda que ele passa a sentir, pelo vexame de ter de ir sentir lá na infância, no exatamente remoto e primitivo de não ter consciência. Golpe de mestre, mestre negro: acordar as sensações, só as impossíveis! E a tragédia, ao final, não se alivia. Não há manobras a ela, não há manobras pelas sensações. Que sensações, aliás? Não se acredita em nada disso. São tudo palavras. E o denso mistério perverso de levar o canto à derrota. Há apenas uma saída. Um beco estreito, para o qual há de se ter talento, fúnebre talento: a ironia. Como se a modernidade cindisse um organismo pleno real afetivo entre as coisas. Depois das filosofias, das cidades, das máquinas, das velocidades, do banal, só o poema pode ser orgânico. Mas o é por técnica. E é. É ele agora, não mais o homem, (mas o homem não é exatamente o poema?) que evoca, cai em pranto, e volta a se acalmar na apatia. A magia agora é o meu olho transtornado, dentro de um automóvel, em São Paulo. Se a ode parece um réquiem das sensações, canto na euforia desesperada de ressuscitá-las, somos nós que acordamos sensíveis, já que o poema se fecha em (também comovida) ironia e desesperança. O desespero vira desesperança, como aquele bebê cansado de chorar pelo copo de leite que não vai ter, que vai ser dado aos gatos, sem que a mãe nem leve em consideração a manha maldita de quem ainda sentisse. O homem caído na mediocridade plena de ter sido um bebê agora reage, quer golpear esses gritos estridentes de pessoas que fossem só emoções. Como se ele não suportasse ter de ir buscar ali as emoções que não terá mais. Não só porque tudo ali é perfeitamente remoto, mas principalmente porque tudo ali é perfeitamente, também, inventado. E cai de novo em si. Sobrevivente, irônico. Sem talvez, um pingo de complacência consigo. Apenas um mago ciente de sua técnica. Um gênio. Pelo avesso. Mas e nós? Eu e ele, e você, e nós? Arrebatados. Talvez fossemos mais simples que isto tudo, que esta barcarola que ele conduz sem sequer piscar. Nós sim, para muito além da infância e de qualquer mar. Nesta hora – eu imagino – talvez alguém como um autor pudesse, enfim, franzir a boca num sorriso. De lado. Afinal, sentir? Sinta quem lê.