segunda-feira, março 5

lições de magia, um [do infindável livro do contágio]


Lições de magia, um

é preciso desestabilizar o dizer, fazer as coisas ditas caírem no abismo de si mesmas – a tristeza escuta, como é que se rega o amor desta mesma escuta – é preciso que as tristezas todas sejam eivadas – a dor quer ser silenciosa – a palavra conduz, mas não doma o animal – o cavalo em pelo absurdo fica colado à sela invisível colada ao corpo da amazona, uma coisa só que se despedaça em muitas outras quando a amazona desce de si e segue para o seu desjejum ou sua morte – quando estão juntos nenhuma respiração oscila – estão imunes ao dizer – estão contagiados – nenhuma lei, a profícua alegria, a nomeação rara dos silentes – não jogam teias no possível futuro, não afivelam impossíveis outros tempos, não fogem pelo espaço ao espaço – o dom de um infinito é abismo – cavalgam






-       Veja Teresa, por que é que eu disse o que disse?
-       Foste tu quem o disseste, realmente?, indagou Teresa
-       Foi algo em mim que se iniciou e é agora algo em ti que parece carregá-lo.
-       O que mesmo disseste?
-       Dissemos que existe um desejo maligno nas pequenas memórias,
-       E como o disseste?
-       Talvez tenha sido raptada.
-       Nós duas?
-       Nós duas e ela também.
-       São só as palavras que fazem punir?
-       Não, mas as que fazem mais.
-       E agora, como é que nos encontramos?
-       Terás o desafio de esquecer.
-       Talvez fingir que esqueço.
-       Talvez.
-       Talvez.
-       Operar o começo das separações.
-       Das escolhas.
-       Venha como serão tuas compreensões.
-       Mas o desejo?
-       Inverte a ampola, pões-te no lugar de quem te ouviria
-       Pensar que sou eu a dizer? A atrocidade?
-       Sim, limiar na mão, dedo que aponta
-       Deixando tudo a perder-se e perdoar-se
-       É então assim o silêncio?
-       A hera que abriga o teu repouso
-       Como um elo?
-       Como a palavra de denso amor
-       É disto que me lembrarei
-       É disto que nos lembraremos
-       Você está aí, Teresa?
-       Aqui, te escuto.
-       Te escuto, um rio de reinício.
-       A milésima enxurrada
-       O erro sintomático de verter
-       De dizer, Teresa, de dizer
-       Água para todo lado:






é então onde renovo a tua pele
os escorbutos e os gengibres selam os modos
       dupla concavidade do real –
princípios sonoros da aragem

a cotovia desce ao berço sonolento
põe porosidades, amor, gotículas de sal
e vocálicas, como o primeiro órgão
da manhã – lúcifer, destino – esta colcha
envelhecendo-se em currais, leite, moscas
do canavial

isto tudo se despede, abre a cartilagem
dissolve-se no choque elétrico da brancura
e vem à realeza, onde, nos apresentamos:

não seremos dos lugares, isto nos respira – o só
é mata-burros, os animais têm asas e tu pegas
o carvão das foices, molhas o ato num desenho
aberto – é então a pele,

silvestre em que se experimenta
o onde
sanguíneos, amamos




quinta-feira, maio 22

[na noite anterior, reunidas ao longo de um rio escuro] [carta do dia] [lua em áries, sol em gêmeos] [bacantes]



Na noite anterior, reunidas ao longo de um rio escuro
com uma tela de cinema no meio, mulheres de infâncias,
aderimos ao segredo, uma festa íntima
regada a sono e abertura

No dia seguinte seguíamos à terra
o homem que não conheço estava lá nos esperando
entrei, ele me apontava os detalhes do barro
a casa muito pequena e vermelha
como uma casa de sol, cautelosa

Sentados no jardim, próximo das máquinas
de semear e colher, ele me dizia como funcionavam os dias
eu escutava e a serpente imensa vermelha e negra se acomodou
ao redor de nossa conversa
eu pensava nesta serpente que, imensa, dava para rodear um riacho todo
seu corpo sendo assim a borda do rio, o limite das águas
e estaríamos seguros ali dentro

a cabeça da serpente estava próxima de minhas pernas
uma cabeça grande, os olhos semicerrados e a boca muda
eu a toquei, não próxima da cabeça, mais abaixo, como convém
à majestade

o homem ainda falava e um cavalo-égua alazão
entrou no círculo da serpente, imenso, reluzente
e olhando-nos se agachou e depois se deitou
apoiando sua enorme cabeça em meu colo
respirando muito próximo de minha barriga

soube uma manta de pepitas de fogo sobre a pele
o entendimento apenas de beleza que era a graça
e a noite que se ungia

Neste momento estávamos quase todas ali, as mulheres de infâncias
íamos chegando, trazíamos uma boca aberta, coisas de beber, coisas de comer
a casa se ampliava para nós, nos abraçávamos, quanto tempo
esperávamos por aquela lua e aquele sol

o sol entrava em gêmeos, a lua estava em Áries
iríamos alcançar a meditação noturna, a viagem prometida

eu faria dizer as palavras do rito
todas as outras, em roda, esperavam excitadas
quando chegasse o ponto de ascendência, a
dança das imagens 

apenas uma, a amiga densa, antiga como as outras,
desistira da noite
olhava ao redor com impaciência, dizia coisas que desmanchavam
a paisagem

Mas tinha havido a noite passada
em que todas, menos aquela, soubessem da maravilha
e não desistissem

Na noite passada atravessamos o espelho
o que diziam pela minha boca: veja
aquela que te olha do espelho – completa
pela prata líquida dos passados, 
numa das vidências, alguém nadava
pois que o eixo d'água era nela haver um prêmio
dentro do trabalho exímio de nadar,
outra escutava a voz de um tio que lhe passava
o número de telefone do Sr Pi, um número com
100 letras, e que ela lhe telefonasse
outra, variante, via-se de outros numes, e em cada
uma a noite se fazendo circular e audível

Nesta noite no entanto era o duplo que seria tocado
a descida do sol sendo mais íngreme, o mercúrio
alado em sua gangorra vestiria o portal psicopompo
e a nós nos seria dado o gosto
daquela que nos vive oculta

Não fosse a amiga cismada, querendo ligar a televisão
e que pulássemos o ritual e fôssemos diretamente
cada uma contar de sua vida, suas domesticidades,
suas violências. Eu tentava dissuadi-la abraçando
as outras com a força da noite anterior. Nada estaria
decidido.

O ritual frágil, perene, simultaneamente
e só acontecia se inteiro, entregue, inofensivo

dos medos

O meu duplo era ela
acordado pelo sol não noturno
e era preciso seguir o ritual
seduzindo sem infâmia ou capricho
a força contrária que me dissolvia
pois que à noite a noite fosse erguida








quarta-feira, novembro 27

página 73, as primeiras águas debaixo


água na lua

o que te sobra até o infinito é um mundo

iniciação às coisas graves
contemporâneas da infância

chove o sumiço pelo asfalto
imaginário, mito tão antigo
fotografia e gestos de fala nos móveis
conheci, por algum verbo? estima
mediação do mito

territórios da linha da mão
datilografia bastante muda, não posso
te dizer o que te ajude
(medida e plano de imagens
para ver a neve
imaginária)

(os avós, mediadores
do mito para qualquer
infante)

esta ética é insuficiente
as águas entram na língua afobada
como nomear esta desorganização do tempo,
história? histeria?

o nome próprio passivo de explorações descontínuas
pequena agressão, noite plena, nome próprio, simulação

sou bastarda nas coisas boas dos homens
o amparo é o mesmo abismo
a ficção faz o retorno do que difere
abre uma facção de ilegitimidades
por onde apenas respira o que segue
vivo podendo vida
apenas assim
fetiche de uma língua prestidigitadora
mangue bambo bisavôs renúncia cremação

as crianças continuam marchando rumo
ao acidente
pés em prumo, cabeça ereta, olhos no medo
a história espiralada, sombrias
bordas, vento e testemunha
de uma febre em segredo
inflamada
eternidade

é impossível ser sincera?
tenta
tenta mais uma vez
absolutamente
impossível

a sinceridade é um ponto desforme
impalpável, amputado

cheiro uma tangerina vermelha ao ponto
das desistências
toda ideia esbarra na sua própria simplicidade
não inocente

manteiga
mantejoula
subúrbio
barbitúricos
néctar
da página
boca oca
oca oca
onde morar
sal a pique
barro
rede
exclusões
e balanços

depois, me desculpe: cálamo
por toda parte o desperdício
da rima
das malemolentes fugas
afluentes

esta tarde altiva terça-feira qualquer outra
na palavra
um mal alvo, boneca de úlcera, lugar-comum
literatura
para nenhuma
literatura apenas nome extensivo
dormente, quase
tem gente posando para o retrato
(retrátil, diz)
apenas ligeiramente fresco
graça e bonança
bem edificadas
literatura

um urro
dentro das forcas
põe a língua cerrada para fora

o que te sobra até o infinito é um mundo compromisso branco
branco de pálido, diz
sim, opaco

chove sobre o termômetro da obra
a tangerina repousa sob a nuca
nunca
é o que importa
taça cintilante, adstringências, negócio
é importante notar a tentativa esgarçada
de sinceridade nesta hora
sem escrita

desculpe se este mais sincero te soa prenda fácil
estão ouvindo os risinhos? as coxias?
estarei bêbada em quaisquer segundos
pronta para o mergulho, imagem
pobre e frágil, em estado de exclusão
cadente obviedade
calo-me

e você também espera
esta pessoa que espera
o nome disso é cotidiano

tangerina amarela cadillac obsceno (não) vinho branco praça da república
coisas comuns
ao rés dos edifícios
e das pílulas políticas
dos meninos enjaulados
numa beleza já sem
idade

um coração picadinho
e arroz com alecrim
bastam

congratule-se de não estar assim como nós todos, esperando
sem esperança

ou de saber ou é claro achar que sabe
o que espera

sou uma sujeita romântica

não deixo nada
pela metade