quinta-feira, maio 22

[na noite anterior, reunidas ao longo de um rio escuro] [carta do dia] [lua em áries, sol em gêmeos] [bacantes]



Na noite anterior, reunidas ao longo de um rio escuro
com uma tela de cinema no meio, mulheres de infâncias,
aderimos ao segredo, uma festa íntima
regada a sono e abertura

No dia seguinte seguíamos à terra
o homem que não conheço estava lá nos esperando
entrei, ele me apontava os detalhes do barro
a casa muito pequena e vermelha
como uma casa de sol, cautelosa

Sentados no jardim, próximo das máquinas
de semear e colher, ele me dizia como funcionavam os dias
eu escutava e a serpente imensa vermelha e negra se acomodou
ao redor de nossa conversa
eu pensava nesta serpente que, imensa, dava para rodear um riacho todo
seu corpo sendo assim a borda do rio, o limite das águas
e estaríamos seguros ali dentro

a cabeça da serpente estava próxima de minhas pernas
uma cabeça grande, os olhos semicerrados e a boca muda
eu a toquei, não próxima da cabeça, mais abaixo, como convém
à majestade

o homem ainda falava e um cavalo-égua alazão
entrou no círculo da serpente, imenso, reluzente
e olhando-nos se agachou e depois se deitou
apoiando sua enorme cabeça em meu colo
respirando muito próximo de minha barriga

soube uma manta de pepitas de fogo sobre a pele
o entendimento apenas de beleza que era a graça
e a noite que se ungia

Neste momento estávamos quase todas ali, as mulheres de infâncias
íamos chegando, trazíamos uma boca aberta, coisas de beber, coisas de comer
a casa se ampliava para nós, nos abraçávamos, quanto tempo
esperávamos por aquela lua e aquele sol

o sol entrava em gêmeos, a lua estava em Áries
iríamos alcançar a meditação noturna, a viagem prometida

eu faria dizer as palavras do rito
todas as outras, em roda, esperavam excitadas
quando chegasse o ponto de ascendência, a
dança das imagens 

apenas uma, a amiga densa, antiga como as outras,
desistira da noite
olhava ao redor com impaciência, dizia coisas que desmanchavam
a paisagem

Mas tinha havido a noite passada
em que todas, menos aquela, soubessem da maravilha
e não desistissem

Na noite passada atravessamos o espelho
o que diziam pela minha boca: veja
aquela que te olha do espelho – completa
pela prata líquida dos passados, 
numa das vidências, alguém nadava
pois que o eixo d'água era nela haver um prêmio
dentro do trabalho exímio de nadar,
outra escutava a voz de um tio que lhe passava
o número de telefone do Sr Pi, um número com
100 letras, e que ela lhe telefonasse
outra, variante, via-se de outros numes, e em cada
uma a noite se fazendo circular e audível

Nesta noite no entanto era o duplo que seria tocado
a descida do sol sendo mais íngreme, o mercúrio
alado em sua gangorra vestiria o portal psicopompo
e a nós nos seria dado o gosto
daquela que nos vive oculta

Não fosse a amiga cismada, querendo ligar a televisão
e que pulássemos o ritual e fôssemos diretamente
cada uma contar de sua vida, suas domesticidades,
suas violências. Eu tentava dissuadi-la abraçando
as outras com a força da noite anterior. Nada estaria
decidido.

O ritual frágil, perene, simultaneamente
e só acontecia se inteiro, entregue, inofensivo

dos medos

O meu duplo era ela
acordado pelo sol não noturno
e era preciso seguir o ritual
seduzindo sem infâmia ou capricho
a força contrária que me dissolvia
pois que à noite a noite fosse erguida








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